Pai fala ao iG da Áustria e pede a prisão de tia e prima da menina morta aos 4 anos. As duas foram denunciadas por tortura pelo MP
R., 11 anos, chegou ao hospital estadual Adão Pereira Nunes, em Duque de Caxias, com a irmã Sophie Zanger, 4 anos, desacordada nos braços, em 12 de junho do ano passado. Sophie estava em coma e tinha marcas na cabeça e no corpo. R. disse que tinha batido na irmã, como ouvira da tia Geovana dos Santos Viana e da prima Lílian dos Santos.
A enfermeira do hospital Deise Santos desconfiou da história e pediu para R. levantar a camisa. Ficou chocada com os hematomas que descobriu também no corpo dele. “Ah, então você surrou a sua irmã e depois se surrou também?”, perguntou Deise.
Sophie nunca mais acordou. Passou sete dias em coma, com traumatismo craniano, e morreu, em 19 de junho.
Lílian (à esquerda) e Geovana Santos, prima e tia de Sophie Zanger, deixam delegacia após depoimento na apuração da morte da menina de 4 anos
O austríaco Sascha Zanger, pai dela e de R., já lutava na Justiça brasileira para ver e ter a guarda dos filhos havia um ano e meio, sem sucesso. A mãe das crianças, Maristela Santos, de quem já era separado, fugira da Áustria com os filhos em fevereiro de 2008. Quando Sascha chegou ao hospital com o ursinho de pelúcia favorito da filha, às 5h do dia 19, recebeu a pior notícia de sua vida.
Um ano depois, as duas denunciadas pelo Ministério Público por maus-tratos e tortura, Geovana e Lílian, que negam as agressões, estão em liberdade. O processo ainda nem começou propriamente na Justiça, apesar de já ter passado por dois juízes, um criminal e um do juizado da violência doméstica e familiar contra a mulher: ambos disseram que o caso não era de sua competência. Agora cabe ao desembargador Cairo Ítalo David, da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, determinar quem julgará o fato.
Menina tinha peso de criança de 2 anos e meio ao morrer
Em 10 de junho de 2009, R. chegou da escola e encontrou Sophie sentada encolhida no banheiro escuro, com a roupinha molhada de xixi. “Viu o que você fez com a sua irmã?”, gritou-lhe a prima Lílian. Como já tinha feito muitas vezes, deu banho na irmã pequena e a vestiu. Ela ficou quieta e amuada no sofá da sala, sem forças.
Dois dias depois, a história se repetiu. Quando R. banhava a irmã, ela desmaiou e caiu no chão. Já tinha um corte com pontos de cerca de 10 centímetros no lado direito da cabeça. Recobrou a consciência, mas minutos depois, após se vestir, desmaiou novamente. A prima Lílian, que estudava para ser técnica de enfermagem, fez manobras de ressuscitação, respiração boca-a-boca, mas Sophie não se reanimou. Mandou o menino buscar ajuda, sob chuva forte. Vendo o desespero do menino, vizinhos os levaram ao hospital.
Sophie e o pai, Sascha,na Áustria. A menina de 4 anos foi socorrida e levada ao hospital pelo irmão, de 11 anos
Desnutrida, Sophie, aos 4 anos, morreu com 14 quilos – peso médio de uma menina de 2 anos e meio, segundo o pediatra Paulo Roberto Lopes, do Hospital dos Servidores/RJ.
“As assassinas ainda estão livres, é muito triste. Este caso não estará encerrado até que as duas pessoas estejam na prisão. É difícil entender, não sei como é possível. Na Áustria, estariam na prisão até o julgamento. Não existe na Europa uma coisa dessas”, disse ao iG, Sascha, por telefone, da Áustria. “Sophie e R. tinham hematomas no corpo todo e não aconteceu nada com as responsáveis. Gastei mais de 100 mil euros com advogados para ter uma filha morta”, lamentou gerente de vendas da rede de cafeterias Lavazza.
Mãe saiu com filhos da Áustria em 2008
A morte foi o desfecho trágico da história dramática de Sophie, R. e Sascha Zanger, iniciada em 1993, na boate Help, onde conheceu Maristela, mãe dos filhos.
A Help era reduto de prostituição em Copacabana e foi fechado no início deste ano. Maristela lhe contou que iria morar na Espanha e, em dezembro daquele ano, ligou para Sascha na Áustria pedindo ajuda por causa de problemas com o cafetão. Ele foi encontrá-la em Madri e passou dez dias lá. “Fiquei apaixonado e a levei para a Áustria”, contou. Casaram-se em 20 de fevereiro de 95. No fim do ano seguinte, R. nasceu.
Com o tempo, de acordo com Sascha, Maristela passou a beber escondida e a dar sinais de esquizofrenia. Segundo Anayá Caldas da Rocha, que criou Maristela dos 13 aos 19 anos, após a morte da mãe, ela sofre da doença de Huntington – desordem neurológica degenerativa que afeta movimentos, habilidades mentais e aspectos da personalidade.
Maristela Santos (de azul), mãe de Sophie Zanger, saiu da Áustria com os dois filhos em 2008. Ela tem problemas psiquiátricos
Evitava encontrar amigos e a família do marido. “Ela queria que eu e meu filho ficássemos só com ela.” Em 2000, com 3 anos e meio, R. quebrou os dois braços ao cair da janela de casa, da altura de 12 metros. A mãe tinha saído para fazer aulas de auto-escola e deixara o filho dormindo. “Ela viu que errou e piorou. Começou a ir a bares, discotecas, voltava para casa às 14h do dia seguinte, mentia frequentemente”, contou Sascha. Anayá confirmou as histórias ao iG.
O relacionamento degringolou, e o gerente de vendas passou a viajar mais profissionalmente, para evitar estar em casa. Apesar da distância do casal, Sophie nasceu em 28 de março de 2005, mas não evitou a separação, no fim de 2006. Com o divórcio, o pai passou a só poder ver os filhos aos domingos, entre 13h e 17h. Dava pensão mensal de 1.400 euros para manter os filhos em um apartamento de 90 metros quadrados. “Aí começou a catástrofe. Maristela foi ao conselho tutelar, depois a um centro de mulheres e disse que eu batia nela, um monte de mentiras”, disse Sascha.
O austríaco descobriu que a ex-mulher e os filhos tinham saído do país porque ela perdera uma bolsa em Munique, Alemanha. Contratou um escritório de advocacia e um detetive para localizar Maristela no Rio e conseguiu encontrar-se com ela por quatro dias em um hotel no Rio para tentar fazer um acordo em junho de 2008.
“Foi um terror, porque primeiro ela disse que queria ir para a Áustria, depois que não, rasgou o passaporte, fez escândalo... Ela não queria contrato amigável”, disse.
Espancamentos e geladeira com cadeado na casa da tia
Na Áustria, o pai tinha guarda exclusiva das crianças, mas no Brasil o processo de guarda não andava como imaginava. Foram quatro viagens ao país para tentar rever os filhos.
Em dezembro de 2008, Sascha voltou ao Brasil, e depois desse encontro, os filhos se mudaram com a mãe para um apartamento, e a “avó” Anayá conseguiu bolsa de estudos para R. em um colégio particular. Pouco tempo depois, porém, Maristela se mudou com os filhos para a casa da irmã Geovana, onde também moravam o marido e a filha, Lílian. “O único objetivo deles foi receber os 1.400 euros. Em janeiro de 2009, bateram na Maristela e a expulsaram de casa, toda machucada”, afirmou Sascha.
Sophie e o pai, Sascha,na Áustria. Laudo apontou mortepor traumatismo craniano
Sem casa, Maristela passou a vagar na rua, como mendiga. Mas contou a Anayá que os filhos eram espancados, dopados e não se alimentavam. “Não davam comida, não as limpavam. Desde o começo bateram nos meus filhos. Tinham de fazer tudo o que mandavam, se Sophie chorava, apanhava. Meu filho, com 11 anos, era um empregado, tinha que limpar a casa. Trancavam a geladeira a cadeado, para minha filha, que acordava de madrugada com fome, não pegar comida”, disse Sascha. Vizinhos contaram em depoimento à polícia ouvir barulhos na casa e constantes choros de crianças.
A partir dos relatos, Anayá fez um relatório e enviou a um advogado, que pediu busca e apreensão das crianças. A polícia levou os irmãos a um abrigo de menores infratores. “R. dormiu abraçado com Sophie para protegê-la. No dia seguinte, Geovana e o marido foram lá e disseram que amavam os meninos loucamente. O juiz deu a guarda na hora. Foi a coisa mais estúpida que já vi”, disse Anayá ao iG.
‘Fiquei só com o corpo morto de minha filha’
Na Páscoa, em abril, Sascha veio novamente ao Rio. “Vi como meus filhos estavam sofrendo. Na Páscoa, quase não reconheci meus filhos. Sophie quase não sorria, estava totalmente desnutrida, com uma marca roxa na testa. Foi uma coisa horrível”, lembra.
O Ministério da Justiça lhe recomendou um advogado especialista na Convenção de Haia, segundo a qual pode ser considerado seqüestro viajar ao exterior com o filho sem autorização de um dos pais. Gastou 25 mil euros, mas não conseguiu benefício nenhum. Ao mesmo tempo, tinha outro advogado para tentar a guarda.
Sascha Zanger, pai de sophie, abraça o filho R. antes de deixar o país, após a morte da filha de 4 anos. O menino hoje vive com ele na Áustria
Em 17 de junho, o pai soube pelo advogado que Sophie estava no CTI, em coma. “Fui ao Brasil no dia seguinte. Dia 19 de junho, às 5h, cheguei ao hospital, e o gerente disse que minha filha tinha morrido. Fiquei só com o corpo morto de minha filha e com o urso dela na mão. Tinha quatro anos. Estava toda marcada.”
O auto de exame cadavérico DC/SN 1107/09 do IML (Instituto Médico Legal) apontava hematomas de até 15 centímetros nas pernas, braços, ombros e nádegas. O perito Paulo Roberto Cazarim disse ao iG lembrar que o motivo da morte foi “pancada com objeto contundente”. Para o delegado Aguinaldo Ribeiro, que apurou o caso, Sophie era agredida constantemente. “Ela tem marcas que caracterizavam que ela era agredida constantemente, em datas diferentes, o que me traz a convicção de maus-tratos, no mínimo.”
O Ministério Público só fez a denúncia em 18 de março, quase exatos nove meses depois da morte de Sophie. No fim do mês, o juiz criminal de Santa Cruz José Nilo Ferreira declinou da competência, alegando se tratar de violência doméstica. Encaminhou o caso para o Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, em Campo Grande, que também declinou da competência. O TJ agora vai decidir quem deve julgar.
O iG ligou para parentes e telefones da família de Lílian e Geovana, acusadas pelo MP, mas não conseguiu contato com as duas. Elas também não tem advogado designado para defendê-las, segundo o site do Tribunal de Justiça do Rio.
Enquanto Sophie esteve internada, R. ficou na casa dos tios, até a véspera da morte da irmã, quando foi para a casa da “avó” Anayá. “Meu filho continuou a morar na casa dos assassinos. É um absurdo, insuportável. Ainda precisei lutar quatro semanas no Brasil para voltar com eles, porque o juiz não liberava. Só com a pressão do governo da Áustria a juíza decidiu que eu poderia sair do Brasil com eles. Mas o juízo ainda determinou um exame psicológico, que me custou 2.000 euros, para saber se eu tinha estuprado as crianças”, reclama Sascha.
Apesar de tudo, o austríaco diz não ter raiva do Brasil e hoje é noivo de outra brasileira.
De acordo com ele, R. está hoje “muito bem” e readaptado à Áustria. R. tem acompanhamento psicológico. “Ele só não fala sobre o assunto, não quer. Mas está ótimo na escola.”
Um ano depois, o pai Sascha Zanger espera a Justiça.(Raphael Gomide - iG Rio de Janeiro)
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